OPINIÃO

A grande reportagem da maior tragédia climática de Porto Alegre

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Se me fosse dada a incumbência de resumir, em poucas palavras, a obra dos jornalistas André Malinoski, Marcelo Gonzatto e Rodrigo Lopes, A ENCHENTE DE 24, recentemente publicada pelas Edições BesouroBox, de Porto Alegre, eu, dificilmente, encontraria alternativa melhor do que defini-la como uma grande reportagem sobre a maior tragédia climática de Porto Alegre. Efetivamente, André, Marcelo e Rodrigo, como jornalistas experientes, integrantes do principal conglomerado de comunicação do sul do País, o Grupo RBS, não se desviaram do bom jornalismo, ao se preocuparem mais com a descrição e a apuração correta dos acontecimentos do que propriamente, como sói acontecer, emitirem opiniões. Acabariam, em razão disso, produzindo um livro que, ao reunir material que, de outra forma, ficaria disperso, certamente vai transcender a efemeridade das páginas dos jornais para se transformar em uma obra perene e de leitura obrigatória para quem quiser, de fato, entender o que aconteceu na Grande Porto Alegre, durante a enchente de 2024.

A cronologia da tragédia anunciada, descrita com minúcias e detalhes até então não conhecidos - desde o dia 1º de maio quando a elevação rápida do nível do Guaíba deu sinais do que ainda estava por vir, passando, em 3 de maio, pela superação da marca histórica dos 4m76cm, registrada em 1941, até atingir, em 5 de maio, a cota recorde de 5m37cm, e todos os desdobramentos, no dia a dia na capital do Estado sitiada, que exigiu a derrubada da passarela da Estação Rodoviária para a construção e um corredor humanitário pela Avenida Castelo Branco, em 10 de maio, seguido do drama dos desabrigados e a corrente de solidariedade que se criou em torno desses, até que, passados 29 dias intermináveis, o nível do Guaíba, no pórtico central do Cais Mauá, voltou a ficar abaixo da cota de inundação, em 31 de maio - é fonte de consulta obrigatória, para quem, no futuro, buscar o resgate histórico desse cataclismo climático que assolou, não só a Grande Porto Alegre, mas boa parte do Rio Grande do Sul. Inclua-se, também, o registro dos números da cheia e seus impactos na Capital, postos na esmerada compilação dos autores, com destaque para 5 mortos, 160.210 pessoas afetada, 39.422 edificações ilhadas, 45.970 empresa prejudicadas, etc.

Mais do que identificar culpados pela tragédia que assolou a capital dos gaúchos, com a inundação do centro histórico e de alguns bairros da cidade, além de zonas nas cidades vizinhas, os autores do livro A ENCHENTE DE 24 buscaram o entendimento das causas que levaram às falhas do sistema anticheias de Poto Alegre, que vai mais além dos 2.647 m do Muro da Mauá, construído no Centro Histórico, passando pelos 24 km de diques externos a sul e a norte da cortina de concreto e por outros 44 km de diques internos destinados a conter a subidas de arroios como Sarandi, Dilúvio, Cavalhada e Sanga da Morte. Resumindo, o sistema, quando posto a prova, em 2024, falhou. Havia dados sinais que isso podia acontecer, em 2023. As razões para o caos que se instalou na Capital do Estado são muitas. Desde a falta de um plano de contingência, validado com simulações envolvendo a população, para lidar com desastres dessa natureza, ausência ou manutenção deficiente dos equipamentos (frestas nos pórticos do Muro da Mauá), altura das estruturas de proteção subdimensionadas, casas de bombeamento que tiveram de ser desligadas ou não funcionaram e tantas outras, detalhadas e avalizadas por técnicos em hidrologia, que os autores do livro citado tiveram a preocupação de consultar antes de publicar.

O melhor da obra, na minha opinião, está na descrição, nua e crua, do drama vivido pelos atingidos pela enchente de 2024, nos bairros mais pobres de Porto Alegre, na região das ilhas e nas cidades vizinhas que são partes da Grande Porto Alegre (Canoas e Eldorado do Sul, por exemplo), mostrando o quanto o ser humano pode, numa hora dessas, exteriorizar o seu lado mais torpe, manifesto nos saqueadores de ocasião, ou mais altruístico, nas atitudes dos que se solidarizaram em ajudar os necessitados. Exemplos não faltam na obra, sendo encontráveis nos relatos de casos, acompanhados de perto pelos jornalistas, envolvendo o resgate de pessoas e de animais (o caso do cavalo Caramelo foi emblemático, mas não foi o único) e até a inusitada situação vivida por um senhor de 99 anos que, tendo sido atingido pela enchente de 1941, viu a história se repetir, como tragédia, em 2024.

A enchente de 2024, em Porto Alegre, serviu para mostrar que, nesse tipo de situação, ainda que não se possa ignorar os rastros do prejuízo deixados na economia e na infraestrutura destruída, os mais vulneráveis (pobres) sempre são os mais atingidos. Vejamos os casos do Professor M. e da Doutora N. Ele morador no Menino Deus e ela, não muitos distante dali, na Praia de Belas. Quando as águas subiram nas imediações dos seus prédios, eles tiveram que deixar os seus apartamentos em barcos da Defesa Civil. Ele, tentando sair de Porto Alegre, na malfadada fuga da cidade, rumo ao litoral, pela Rodovia RS-040, por Viamão, na única rota de evacuação que sobrara, acabaria hospedado em um Hotel na Av. Protásio Alves, até conseguir rumar para Florianópolis dias depois. A Doutora N. foi mais afortunada, não tendo conseguido retirar o seu carro da garagem, locou um automóvel e foi se refugiar na sua casa no litoral catarinense.

Amainada a situação da cheia em Porto Alegre, o Professor M. e a Doutora N. voltaram para o recôndito dos seus lares nos endereços de origem. A mesma sorte não teve o reciclador de sucatas Senhor A., morador da Ilha das Flores, que, ao ter a sua casa arrastada pelas águas, junto foi levada a sua prótese dentária. Depois da passar por abrigos, o Senhor A. acabaria, desprovido da dentadura, dividindo espaço com ratos, em uma barraca de lona presa a toras de madeira cravadas às margens da Rodovia BR 116. P.S.: O Sr. A., depois que a sua história veio a público, mesmo com uma prótese nova, cortesia de uma Clínica Odontológica, continuou sem poder voltar para a casa que não existia mais na Ilha das Flores.

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “El Niño Oscilação Sul – Clima, Vegetação e Agricultura” está disponível para download gratuito: https://www.embrapa.br/en/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1164333/el-nino-oscilacao-sul-clima-vegetacao-e-agricultura


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