“A deficiência está nos espaços e não nas pessoas”. A citação, em tom de alerta, é do presidente da Associação Passo-fundense de Cegos (Apace), Fábio Flores, que, em uma avaliação sobre as condições de acessibilidade da cidade, conversou com a nossa reportagem nessa semana. A entrevista foi feita via mensagens enviadas pelo whatsapp, em texto e em áudios, possibilidade gerada pelas novas ferramentas tecnológicas. No entanto, apesar de avanços como esse que facilitam a comunicação e a interação social, as dificuldades diárias encaradas pelas pessoas com deficiência ainda são muitas, e bem mais amplas, seja num deslocamento pela rua ou para a qualificação pessoal.
Garantir acessibilidade nas vias e o acesso a serviços básicos, como educação, é um grande desafio para uma nação que tem 14,4 milhões de pessoas com deficiência. Os dados indicam que a maioria, cerca de 7,9 milhões de pessoas, apresenta problemas de visão, público atendido pela Apace.
As informações são da publicação “Censo Demográfico 2022: Pessoas com Deficiência e Pessoas Diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista - Resultados preliminares da amostra”, divulgado no último dia 23 pelo IBGE, que traz os perfis sociodemográfico e educacional das pessoas de 2 anos ou mais de idade com deficiência e das pessoas diagnosticadas por profissional de saúde com transtorno do espectro autista (TEA).
O estudo incorporou quesitos voltados à identificação de cinco domínios de dificuldades funcionais: enxergar, ouvir, mobilidade com os membros inferiores, coordenação motora fina e cognição e comunicação. Dentre as constatações, verificou-se que as pessoas com deficiência têm, por exemplo, menor acesso à educação.
Dificuldade de enxergar atinge 7,9 milhões de pessoas no país
No total de pessoas com deficiência (14,4 milhões), a dificuldade funcional mais frequente foi a de enxergar, mesmo usando óculos ou lentes de contato, que atingia cerca de 7,9 milhões de pessoas. Em seguida, aparecia a dificuldade para andar ou subir degraus, mesmo com o uso de prótese ou outro aparelho de auxílio, contabilizando 5,2 milhões de pessoas. A dificuldade funcional relacionada à destreza manual (pegar pequenos objetos ou abrir e fechar tampas) e a dificuldade funcional relativa às funções mentais (com efeitos sobre a comunicação, cuidados pessoais, trabalho ou estudo) atingiam, cada uma, 2,7 milhões de pessoas. Já a dificuldade para ouvir, mesmo com o uso de aparelhos auditivos, atingia 2,6 milhões de pessoas. Cerca de 2,0% da população do país com 2 anos ou mais tinham duas ou mais dificuldades funcionais. Com diagnóstico de autismo, são 2 milhões e 400 mil pessoas.
São milhões de brasileiros que, em seu dia a dia, encaram dificuldades e perigos num aparente simples deslocamento pelas vias urbanas, em boa parte sem a preparação estrutural necessária.
Numa perspectiva local, Fabio Flores - que tem deficiência visual - considera que “as dificuldades são imensas na locomoção independente”, devido a questões como a falta de padronização de ruas e calçadas, por exemplo. “É um sobe e desce, muitos obstáculos que dificultam a locomoção, como caixas de frutas, placas de propaganda, lixeiras colocadas em lugares impróprios, floreiras, produtos de venda de lojas, seja arara de roupas ou móveis”, explicita. Outro empecilho ao deslocamento seguro, aponta o presidente da Apace, é a falta de sinaleira com sinal sonoro para travessia autônoma das pessoas com deficiências visuais nas principais ruas da cidade, “que é uma reivindicação antiga da entidade”.
Flores reconhece, porém, que a estrutura urbana melhorou em vários aspectos. “Com a dotação de piso guia para orientação do deficiente visual; algumas questões de empatia das pessoas ao auxiliarem na travessia de uma rua; mas está muito aquém ainda do que é necessário para ser uma cidade acessível e inclusiva”, pondera.
Dentre as medidas adotadas que podem ter contribuído para amenizar as dificuldades na acessibilidade, o secretário municipal de Planejamento, Giezi Schneider, cita o manual de calçadas, regulamentado pela NBR 9050. A publicação da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece os critérios e parâmetros técnicos para a acessibilidade em edificações, mobiliários, espaços e equipamentos urbanos, visando garantir que todos possam ter acesso seguro e confortável a esses locais, independentemente de suas condições físicas ou mobilidade. Essa norma abrange diversos aspectos, como dimensionamento de portas, corredores e rampas, sinalização, instalações sanitárias acessíveis, entre outros.
“Nas obras, é exigido que toda a calçada executada frente às construções necessitam de pisos acessíveis. Os prédios públicos que projetamos também contemplam acessibilidade, obrigatoriamente”, ressalta o secretário municipal.
Além disso, informou, nos abrigos de ônibus há local marcado e coberto, e em três parques - sendo a Gare, o parque Linear e o Fredolino Chimango - há brinquedos para crianças com deficiência.

Pessoas com deficiência têm menor acesso à Educação
No Brasil, 63,1% das pessoas de 25 anos ou mais com deficiência não completaram o ensino fundamental, enquanto entre as pessoas sem deficiência essa proporção era de 32,3%. No outro extremo, apenas 7,4% das pessoas com deficiência concluíram o ensino superior, contra 19,5% entre as pessoas sem deficiência. Além disso, 25,2% das pessoas com deficiência terminaram a educação básica obrigatória (no mínimo, o ensino médio). Entre as pessoas sem deficiência, essa proporção era mais do que o dobro: 53,4%.
Em 2022, aproximadamente, 1,6 milhão de pessoas de 6 anos ou mais de idade com deficiência frequentavam escola nos mais diversos níveis de ensino. As taxas de escolarização (proporção de estudantes em determinada faixa etária) entre as crianças de 6 a 14 anos eram de 98,4% entre pessoas sem deficiência e de 92,6% entre aquelas com deficiência.
No entanto, a partir dos 15 anos, observa-se uma queda na frequência escolar, especialmente entre pessoas com deficiência. Na faixa de 15 a 17 anos, 85,5% das pessoas sem deficiência estavam na escola, frente a 79,4% das com deficiência.
Meta do PNE
Para orientar as políticas públicas na área da educação e promover melhorias nos indicadores educacionais do país, a Meta 9 do Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu a redução da taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais para 6,5% até 2015 e a erradicação do analfabetismo até 2024.
Em 2022, na população com 15 anos ou mais de idade, havia 2,9 milhões de pessoas com deficiência e analfabetas, o que representa uma taxa de analfabetismo de 21,3%. Entre as pessoas sem deficiência da mesma faixa etária, havia 7,8 milhões de analfabetos, correspondendo a uma taxa de analfabetismo de 5,2%.
O Censo 2022 revela um cenário de profunda desigualdade para a população com deficiência. Nesse grupo, a taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais (21,3%) foi mais do que o triplo da meta estabelecida. Apesar dos progressos obtidos no conjunto da população, o não cumprimento da meta do PNE para esse segmento mostra que as pessoas com deficiência seguem à margem dos avanços educacionais. “No entanto, observam-se avanços significativos na alfabetização das pessoas com deficiência, evidenciados pela taxa de analfabetismo entre jovens de 15 a 17 anos, que é de 11,2% — índice 2,5 vezes inferior ao verificado entre idosos com 60 anos ou mais, cuja taxa atinge 27,9%. Apesar desse progresso, ainda persistem barreiras relevantes que comprometem a plena inclusão educacional dessa população”, ressaltou a analista do IBGE, Luciana dos Santos.
Segundo avalia Fábio Flores, o acesso às escolas de educação infantil, fundamental, médio ou às universidades não é o problema, mas sim a permanência do aluno. “Tem inúmeras dificuldades, seja nas escolas com a falta de monitores que auxiliam a pessoa com deficiência, auxiliam o professor, para que aquele aluno possa ter o conteúdo ao mesmo tempo em que aquele aluno dito normal, que cada um tem a sua especificidade, e também colaborar para a locomoção independente dele em todo o espaço de ensino. Precisa-se ter um trabalho mais próximo entre escola, instituição representativa da pessoa com deficiência visual e a família para poder, sim, a pessoa com deficiência ter condições de aprender”, opina.
A entidade que representa, inclusive, promove atividades relacionadas à educação, aprendizagem do sistema braile, além de técnicas diversas como o uso da bengala, apoio psicológico e social, recolocação profissional, ações de sensibilização e capacitação para a sociedade, fortalecimento de vínculos familiares, dentre outras.
Município cita avanços na educação
A Secretaria Municipal de Educação de Passo Fundo garantiu que tem intensificado as ações voltadas à Educação Especial. Em 2024, mencionou, foram realizadas formações específicas para professoras do Atendimento Educacional Especializado (AEE), abordando temas como legislação, Plano Educacional Individualizado (PEI) e adaptação curricular. “O AEE está presente em todas as escolas de ensino fundamental e em sete unidades de educação infantil, com atendimento individualizado e acompanhamento em sala de aula. A rede conta com 233 profissionais de apoio e 115 estagiários atuando diretamente com os estudantes”, listou o secretário Adriano Canabarro Teixeira.
Entre as iniciativas que destaca, o gestor cita o projeto Pense Mais, presente em três escolas da rede, que atende alunos com deficiência intelectual no turno inverso, com foco em estratégias de alfabetização e promoção da autonomia. A EMAU Olga Caetano Dias atende 140 estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), incluindo crianças da educação infantil, com atendimentos paralelos ao ensino regular, utilizando técnicas especializadas para apoiar sua permanência qualificada nas escolas.
No Centro Pós-Covid de Combate à Desigualdade Educacional, complementa, duas ações de destaque estão em andamento: o projeto Genius, voltado a estudantes com altas habilidades, promovendo autoestima, inteligência emocional e relações interpessoais saudáveis; e a estimulação precoce para crianças de 6 meses a 3 anos, com atividades que apoiam o desenvolvimento integral, também implementadas nas salas de recursos das escolas de tempo integral da etapa creche, afirmou o secretário.
“A Secretaria também mantém parcerias importantes: com a APAE, por meio do projeto Alfaletrando, voltado ao desenvolvimento de estudantes com deficiência intelectual; e com o TEAcolhe, que realiza avaliações para novos diagnósticos e encaminhamentos terapêuticos, fortalecendo o vínculo entre educação, saúde e assistência social. Essas ações demonstram o compromisso de Passo Fundo com uma educação inclusiva, acessível e de qualidade para todos”, defende Adriano Canabarro Teixeira.
“Nada sobre nós com deficiência sem fazermos parte dessa construção”
Planejar melhor as cidades, necessariamente, com a participação da comunidade interessada e afetada é uma das medidas essenciais, considera Fabio Flores. “Desde 2006, da convenção da ONU, se trata de que a deficiência está nos espaços e não na pessoa; haver uma padronização das nossas calçadas em Passo Fundo e ter todo um plano de educação”. Esse tópico se relaciona a campanhas informativas de conscientização e sensibilização, cursos e palestras que preparem a população em geral para a convivência com as pessoas com deficiência visual, ressalta. “Isso é um pouquinho do que seria necessário, mas o planejamento é o principal, e com aquela máxima: ‘nada sobre nós com deficiência sem fazermos parte dessa construção’”, reitera o presidente da Associação Passo-fundense de Cegos.